Autoria: Pedro Onofre
Eis que Pedro Onofre resolve publicar o seu Teatro 4, o quarto volume de suas peças teatrais. Desta vez, duas peças curtas, de fácil montagem, em razão do número de personagens, cujos enredos prendem o espectador desde a primeira cena. A primeira, Bebgor, uma peça que remonta à ditadura brasileira, mostra o conflito de um juiz de direito que, tendo sentenciado injustamente um preso político, terminou por levá-lo ao suicídio. Com essa peça, de certa forma, Pedro Onofre revolve os tempos de chumbo da ditadura civil militar e possibilita a discussão das inúmeras sentenças injustas proferidas naquele período, mas também nos alerta para a necessidade de nos mantermos sempre vigilantes e atentos para que nunca mais se instale uma ditadura neste país.
Com Bebgor o autor promove, ou melhor, experimenta sua catarse individual, ao punir o juiz, levando-o à morte. Punindo-o no plano da arte, ele assume um papel que é exclusivamente seu, inteira e totalmente seu, enquanto autor. O autor teatral, como os atores, são meio deuses, pois têm o poder de matar e morrer, e depois renascerem com o abrir e fechar das cortinas. Todas as noites, quando se dá o ato teatral, quando a cumplicidade se estabelece entre ator e espectador, essas extraordinárias figuras chamadas atores e atrizes promovem o milagre da vida e da morte para renascerem na noite seguinte. O incrível em Pedro Onofre, além do enredo, são os nomes das personagens: Jaquém (Juiz); Bebgor (figura fantasmagórica, irreal). Gustavo Acioli e Maximiliano Menz nos informam que Jaquém era uma localidade africana, situada no reino de Aladá, onde existia uma feitoria holandesa, na época do tráfico de escravos; hoje, aquele antigo reino é a atual república do Benim. Segundo Sandro Capo Chichi, o reino de Aladá foi fundado no final do século XVI e se tornou um dos mais importantes da costa oeste africana, antes de sua conquista pelo Daomé no século XVIII. Quanto à personagem Bebgor, nada encontramos com relação à sua origem. Fica-nos a interrogação quanto à escolha dos nomes para as personagens, já que nada é gratuito no universo da arte. Como dissemos, a peça se desenvolve num clima de constante suspense e surpresas, com um arremate final realmente surpreendente. Deixaremos para que o leitor desfrute desta surpresa com a leitura do texto.
A segunda peça, Nemesis, também traz em si o elemento surpresa como componente fundamental. Neste aspecto, Pedro Onofre exerce seu ofício com um domínio surpreendente, o que não é tarefa fácil; ele o faz com precisão demoníaca, como um bruxo a manipular suas poções para enredar completamente o desavisado espectador. A condução da carpintaria teatral nesta peça se encaminha para aquilo que Aristóteles denominou de Peripécia e que se constitui na mutação dos sucessos no contrário. Neste sentido, o espectador é surpreendido por este efeito, produzido não de forma intencional, mas como consequência da própria trama, que se foi construindo num crescendo. No universo literário o criador não pode pensar criticamente, pois isso é tarefa da crítica: a ela cabe descobrir, identificar, detectar os aspectos não declarados explicitamente, mas que lá estão escondidos, à espera de ser desvendados.
Nemesis é o nome da jovem protagonista da peça, portadora de uma cegueira psicológica, cujo enredo trata dos fatos responsáveis pela manifestação desta cegueira, quando ela era ainda criança. Pedro Onofre, como ofazem os pescadores, sabe muito bem tecer a sua rede e nela inserir suas personagens, que se movimentam e se conflitam, habilidosamente manipuladas por esse bruxo da dramaturgia alagoana. Nemesis, assim grafada, o nome da personagem título, provém do grego Nêmesis e, etimologicamente significa segundo Rosário Farâni, “deusa da justiça, distribuidora das penas por violência e arrogância”. Outro significado, segundo o mesmo autor, é “indignação, despeito, ira, pena de talião”. Na mitologia, Nêmesis era ardentemente desejada por Zeus, e para fugir à insistente perseguição a deusa percorreu o mundo inteiro, até que, cansada, metamorfoseou-se em gansa. Zeus então se transformou em cisne e a ela se uniu. Como consequência dessa ligação, Nêmesis pôs um ovo e o depositou escondido num bosque sagrado. Encontrado por um pastor, foi entregue a Leda, que o guardou num cesto e, no tempo devido, nasceram os imortais Pólux e Helena. Segundo Junito Brandão, “Nêmesis, como abstração, é uma síntese do espírito helênico. Ela simboliza – como as Erínias – a justiça primitiva dos deuses contra todos aqueles que teimam em ultrapassar o métron. Sua função essencial é, pois, restabelecer o equilíbrio, quando a justiça deixa de ser equânime, em consequência da hýbris, de um ‘excesso’, de uma ‘insolência’praticada”.
Duas peças, dois enredos, duas tramas habilidosamente costuradas, com uma linguagem até certo ponto rebuscada demais, principalmente em Bebgor, mas que oferecem ao espectador duas oportunidades para a reflexão do próprio tempo, sobretudo no que diz respeito ao autoritarismo e ao preconceito. A publicação dessas peças vem bem a propósito, justamente numa época em que a intolerância, das mais variadas formas, seja ela de gênero, de cor, de sexo, etc., espalha-se e repercute em os mais variados setores da sociedade, provocando insegurança e preocupação em todos aqueles que anseiam pela construção de um mundo mais harmônico e igual, livre de qualquer forma de preconceito.
Por Otavio Cabral